A Tirania da Contingência.

Publicado: abril 5, 2011 em Contingência
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Talvez não haja explicação para o que me lanço a explicar. O melhor era ficar quieto sem perturbar a ordem vigente, que por si só não é perturbada nem por um país em fúria, quanto mais por uma crônica destituída de qualquer finalidade, transbordante de inconclusões.

A questão é que a ordem vigente atende por vários nomes, e podemos tratá-los como sinônimos ou, no máximo, aparentados. Por mais que soem diferentes, referem-se sempre ao mesmo significado, e seguimos desconfiando que não signifiquem coisa alguma.

Um nome que vira e mexe reverbera no microfone de congressistas, ministros de Estado, revolucionários de boteco e presidentes de clubes futebol, é a palavra mágica “conjuntura”.

Cony salteia que uma boa conjuntura não precisa de definição nem de explicação.

“Sem determinada conjuntura, não haveria razão para tantos discursos, seminários, jornadas e jornalistas interessados em destrinchar a conjuntura. Toda vez que proferida com certa frequência, quem acaba mudando não é a conjuntura, é o ministro”.

Passemos à meia-irmã da conjuntura, a contingência. Conjuntura tem mais a ver com safra de cana-de-açúcar, e contingência com demissões e corte de salários. “Tivemos de contingenciar os gastos”, diria o vice-diretor financeiro de alguma montadora.

Indo além, poderíamos associar a contingência com as externalidades. Algum economista já parou para pensar se a contingência não seria a soma de todas as externalidades? Externalidades são efeitos a terceiros, não previstos em uma transação entre dois atores.

Magistralmente, o filme “The Corporation” ilustra este conceito com uma cena dos três patetas. Joe arremessa uma torta em Moe, o qual devidamente abaixa e  se esquiva, deixando a torta seguir livre para explodir na cara de Larry, que acabara de entrar pela porta.

Voltando à contingência, não buscarei ao dicionário Houaiss para decifrar esta palavra indômita, mas contingenciarei minha própria rotina, mais especificamente a sangrenta luta diária pelo emagrecimento.

A tentação de colocarmos a culpa na genética é eterna. Coutinho lembra de que a velha pergunta sempre regressa para nos assombrar: “Por que eu?” “Por que a mim?”. A pergunta certa não seria essa, mas sim: “E por que não eu?”, “E por que não a mim?”.

Roth, em seu livro “Nemesis”, nos diz que estamos programados para recusar “a tirania da contingência”. Aceitá-la, seria destruir o alicerce da civilização racionalista: a de que tudo depende dos nossos esforços racionais rumo a um fim perfeito.

De modo que tentamos tomar às mãos as rédeas de nossas vidas. Em meu caso, indo à academia seis vezes por semana, tomando todos os suplementos que o nutricionista manda. Sem embargo, tenho a impressão de que se levar à risca todo aquele cardápio de astronauta, me restará virar nome de alguma postagem de blog, “A breve vida de um comedor de proteínas”. Se não for por saturação do fígado e dos rins, será por desgosto mesmo.

Neste sentido, vivencio um dilema semanal entre a disciplina e o desgosto. Este, não pela academia em si, mas por ficar longe de uma suculenta picanha com farofa de ovos. Digamos também que o primeiro copo de cerveja gelada diminua qualquer probabilidade de passar o final de semana comendo pão sueco ou hambúrguer de soja light, a exatos 0%.

Na outra sexta-feira, sentados em uma creperia, chegou-se o Pindureta e pediu logo uma Coca Zero, no que eu intervi de imediato, solicitando um chope para o colega, instantaneamente recusado. A escusa era a academia ao sábado pela manhã.

Insistindo no parlapatório etílico, respondi: “eu também vou malhar amanhã”. Pindureta apenas rebateu “Mas eu sou um atleta de alta performance”.

Fim das contas, acabei por ir à academia na manhã seguinte, com uma ressaca do tamanho de um rinoceronte. Dito isso, posso não ser um atleta de alta performance, mas posso afirmar tranquilamente que ao menos sou um gordo de alta performance.

Poderia simplesmente aceitar este fato. Eu gosto de praticar exercícios, e adoro comer, de modo que seria natural resignar-me a ser um gordo atleta pelo resto dos anos. Inadvertidamente, teimo em querer mover a montanha que se encontra ao redor do umbigo.

Em tempos sem carro, resolvi ir correndo para o clube em que pratico ginástica. No percurso, passo debaixo de uma jaqueira, constantemente carregada, pronta a largar seus frutos vultosos. Daria para desviar sem maiores dificuldades. Não consigo, contudo, abdicar do sabor do risco, e atravesso debaixo mesmo, olhando para cima, desafiando assaz a jaca e a gravidade.

Pronto. Tanto rodeio para chegar à parca conclusão – posso tentar, obstinadamente, controlar o destino de minha genética, mas a gravidade de uma jaca na testa manda qualquer plano por terra. E manda por terra também o sujeito, a comer grama pela raiz.

Haveria um jeito de lidar com as jacas grandes e verdes que a contingência nos traz? Ou então de desviar das tortadas na cara?

No massacre do dia-a-dia, optamos pelos princípios para pautar nosso comportamento. Só assim para se ter certeza de que não agiremos mal.

Enfrentar todas as situações sob a égide dos princípios não deixa de ser o caminho mais fácil, afinal, não temos de pensar. Alguém já realizou este trabalho por nós. E pagamos caro por isso, o preço do tamanho de cada consciência, sugada pelas doutrinas, fundamentalismos e toda sorte de usurpadores que lucram com o pior do homem: a preguiça e o medo (não o medo instintivo, mas o medo do diferente).

Viver, porém, sob a tirania dos princípios, apenas nos garante uma única certeza: de que sucumbiremos à outra tirania, a da contingência.

A vida não é vitória. A vida é dilema. Para lidar com a incerteza, só aceitando algo muito difícil, qual seja a suspensão de nossos princípios, e a coragem de tomar uma decisão não planejada.

Coutinho nos elucida que, sob a visão de Roth, a contingência só é destrutiva quando existe em nós um sentido deslocado de responsabilidade. Ou seja, só somos destruídos por aquilo que não controlamos quando nutrimos a ilusão de que controlamos tudo.

De minha parte, não arrisco em conclusões, e tampouco em promessas. Qualquer dia, se tentarem me contingenciar com uma de torta de jaca, falarei que estou de dieta.

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Eduardo Pastore

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